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Macondo, Garcia Marques, Brazil
Não sei quem sou. Se soubesse, não estaria escrevendo. E você também não sabe quem é. Se soubesse, não estaria lendo.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

TODA A CURA PARA TODO O MAL

Na quarta-feira da última semana, minha filha mais nova acordou sentindo-se, reclamando de dor de barriga, de dor de cabeça, de dor de sentir dor. Ela estava um pouco quente, febre mínima, e preferimos, eu e minha esposa, amiga de todas as horas, que ela não fosse à escola e a deixamos dormindo em casa, velando seu sono como se pudéssemos protegê-la dos pesadelos que eram nossos. Quando acordou, ao invés de sentir-se melhor, estava ainda mais indisposta, triz, tez pálida, e a febre, que durante suas breves horas de sono vespertino parecia estar em queda, encontrava-se bem acima do normal. Insistentemente lhe dávamos, garganta abaixo, eu e minha esposa, xarope disso e daquilo, beberagens estranhos que combinavam plantas com mel quase intragáveis. Não alcançamos resultado. Insistentemente minha esposa forçava-me a levá-la ao médico, a um posto de saúde, a um centro de macumba, a um shopping, qualquer coisa para que curasse um mal que já era mais nosso do que dela. Antes tivesse eu aceito pois, derrotado, justamente no momento do programa de TV que mais me interessava – toda quarta tem desfile de lingerie no programa da Luciana Gimenez – fui convencido a levá-la ao Posto de Atendimento de nosso convênio médico. Foram quase duas horas de espera enquanto eu perdia as belas mulheres sem estrias as quais, certamente, eu só teria direito em sonhos. Teria mesmo algum candidato prometido aumentar o número de caracteres no tiwtter? Não saberei. Talvez eu jamais saiba.
Na sala de espera, dezenas de outras crianças gripadas, agonizantes. Das narinas de uma delas um catarro verde subia e outro azul descia num malabarismo que nada devia aos melhores artistas do Cirque de Soleil. Era como se estivéssemos no purgatório e a atendente escolhia quem descia ao inferno e quem subia ao céu. Os que desciam, entravam por um corredor e não mais retornavam. Ninguém. Nem crianças nem pais. Os que sbiam ao céu retornavam semicontentes, semicurados ou semienganados. Quando entramos, eu, minha esposa e nossa pobre criança abatida, fomos atendidos por um senhor muito atencioso que mal levantou os olhos de um papel quase em branco. Quase por que havia alguns arabescos, números, contas, anotações dispersas. Na verdade, acho que vi um pênis desenhado. Ele fez uma série de perguntas à minha esposa, como se minha figura ali não existisse, sobre a saúde da pequena. Cada pergunta recebia uma resposta dramática, exagerada. Se fosse outra pessoa que estivesse ali em meu lugar, já teria colocado a pobre coitada da menina nas costas e levado para a funerária mais próxima ou, no mínimo, levantaria-se, deixaria a garota ali e diria: Pode ficar com ela. Eu não quero mais.
Abra a boca. Diga ah! – eu coloquei o “aga” aqui, mas minha filha não o pronunciou e você não o leu. Coloca a língua pra fora. Põe a língua pra dentro. Olha pra cima. Olha pra baixo. Olha para os lados. Levanta os braços. Consegue ver essa caneta aqui? Tenta morder seu cotovelo. Vamos ver sua temperatura. É. Está com febre. Mas não é nada demais, não. Toma isso.
No receituário que ele nos entregou, além de seu nome e sua identificação em garatujas, uma única palavra, mais do que escrita, desenhada, aperfeiçoada com o tempo feito um trabalho dos maiores mestres da arte italiana:
tylenol
O Tylenol está entre os medicamentos mais vendidos no Brasil e no mundo, atrás, entre outros, daqueles para disfunção erétil. Ou seja, quando o negócio não sobe, o Tylenol dá um jeito, e ajudar a subir o caixa da Johnson e Johnson no Brasil. Se o médico acima houvesse sugerido abrir – ou fechar? nunca sei direito… – o chakra da minha filha, mesmo ela sendo menor de idade, eu entenderia. Mas indicar Tylenol assim, de cara, sem pedir exame, identidade, cpf ou certidão de antecedentes criminais? É de mais. Fomos dispensados por um gesto rápido, feito os imperadores que, com o polegar direito, determinavam a morte do gladiador derrotado. Saímos. Ganhamos o céu, mas eu perdi a Luciana Gimenez.
Então, passamos em uma farmácia da cidade, compramos o tal remédio – o original, não o genérico, exigência de minha nobre companheira – e fomos para casa. Cansada, a primeira coisa que minha esposa fez foi tomar um banho, não sem antes pedir-me que eu desse algumas gotinhas do licor para minha filha. Esperto que sou – cursei até o primeiro semestre de arquivologia – ao invés de dar Tylenol, dei algumas gotas de água para menina em uma pequena colher. Pior que isso: pior do que isso, minha vileza desumana fez com que eu jogasse todo o remédio fora e substituisse a beberagem por água. Água pura, sem açúcar nem nada, apenas filtrada – se bem que o filtro estava já vencido. De madrugada, minha esposa acordou par a medir a temperatura da menina, e levou-me junto – vai que alguma coisa saisse errada… Fiquei ali, esperando o termômetro apitar e… milagre!!! Por um momento, era como se minha esposa estivesse vendo à sua frente uma sarça ardente mas que não queimava, ouvindo a voz trovejante de Deus dizendo-lhe: Vai, varoa – era assim que Deus falava nos primórdios – conta para o povo que Tylenol representa toda cura para todo o mal. E mesmo com o milagre à vista, minha esposa deu mais uma colherada da bebida mágica e foi se deitar, puxando-me pelo braço, feliz da vida para seu sono tranquilo e minha conquista silenciosa. No dia seguinte, a menina acordou pulando, cantando, dançando. E eu ria, ria, ria.
O dia inteiro minha esposa dopou a pequena com aquela substância inútil e, a cada vez, pensava que ela estava melhor. Se ela ao menos provasse aquelas gotas que colocava em uma colher perceberia o quanto fazia papel de idiota. Aliás, se minha filha estivesse mesmo ingerindo Tylenol durante todo aquele dia, não estaria mais de pé. Estaria morta, enterrada. No mínimo, em coma. Minha espos ainda fez questão de chamar a vizinhança e contar o milagre que havia presenciado, dizendo que jamais deixaria faltar Tylenol em casa. Mas eu, eu já estava irritado, e dediquei-me, então, a partir daquele dia, a pesquisar tudo sobre esta bebida mágica, este verdadeiro manjar dos deuses.
CONTINUA…

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