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Macondo, Garcia Marques, Brazil
Não sei quem sou. Se soubesse, não estaria escrevendo. E você também não sabe quem é. Se soubesse, não estaria lendo.

sábado, 17 de julho de 2010

RADIOTERAPIA

Estressado, sento-me no sofá da sala e divago. A divagação, o silêncio, os pernilongos, me incomodam. Tudo me incomoda. Quase não há lugar pra mim. Ligo o rádio numa espécie de desafio. Não me lembro a última vez que o fiz. Só tenho ouvido MP3 de músicas antigas – tudo que tem mais de dois anos pertence a um museu vivo – em meu caminho para o trabalho, para casa, para o trabalho. Bandas de rock americanas e inglesas, além de um pouco de rock nacional de fins do século passado, quando muita gente que já morreu ainda estava viva. Na primeira música, uma voz esganiçada canta as mazelas da traição. Ela me deixou. Ela me traiu. Eu me sinto tão só. Mudo de estação ainda em tédio com um T bem grande pra você. Esta segunda música, uma voz feminina ainda mais esganiçada na fracassada tentativa de um falsete, canta as mazelas da traição. Ele me deixou. Ele me traiu. Eu me sinto tão só. Mudo de estação, o tédio é mais que tédio. É desânimo. Beira a fraqueza. A próxima “canção”, por assim dizer, fala de um cara que deixou tudo pra trás para seguir uma mulher. Que o deixou. Que o traiu. Que o faz sentir-se tão só. Acabo de descobrir que o mundo se resume a traições, trapaças e mentiras. O tédio e o desânimo já se transformaram em náuseas. O mundo passa a girar lentamente. Às vezes perde a cor. Às vezes ganha gosto. Mas não me dou por vencido. Deve existir salvação onde menos se espera. Rodo o dial como se rodasse uma roleta, e ouço uma voz jovem e assexuada repetindo : Beibi, beibi, beibi, nooooo!!! Beibi, beibi, beibi, nooooooooooo!!!!!! Antes de vomitar sobre o tapete da sala, tento outra estação e mais outra e mais outra. A mesma desgraça!! Batidas descompassadas, grunidos desafinados, letras com duplo sentido, algumas com triplo, outras ainda mais. O mundo acelera e eu permaneço parado. Desfaleço. Sonho estar no inferno com guitarras estritentes ao meu lado, uma bateria atrás, um público ensandecido à frente gritando palavrões. Estou cantando no Santo Sepulcro, uma banda fictícia dos meus tempos de juventude, criada por mim no momento em que descobri que as Filipinas não ficavam na América Central e percebi que tinha de fazer alguma coisa para melhorar o mundo. Na SS, eu era o vocalista, além de tocar cítara, balalaica, oboé e triângulo, minha especialidade. E fazia as letras. O público tentava subir o palco. Os seguranças espancavam um carinha lá no fundo. O céu no inferno. Se eu morresse assim, teria morrido feliz, mas minha filha me ressucita. Tem os olhos vidrados, em pânico. Eu, me sentindo o próprio John Boonham antes de morrer afogado em seu próprio vômito, suplico. Desliga o rádio, pelamordedeus. E ela, que nunca havia ligado o rádio e só conhecia música através do painel minimalista de seu MP18, não consegue encontrar um mísero botão onoff. Levanto. Cambaleante e buscando forças ocultar fornecidas pelos deuses da guirarra. Devo estar uma figura. E fedorento. Alcanço o pequeno aparelho e arremesso-o contra a parede. A música pára. Piriri piriri piriri, ninguém mais canta pra mim. O mundo está de volta ao seu lugar. Eu estou de volta ao meu tédio salvador. No chão, pequenas fagulhas saem do aparelho destruído. Sinto-me vingado. O cara que inventou este troço merece estar no inferno numa hora dessas. Ouvindo Santo Sepulcro.

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