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Quem sou eu

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Macondo, Garcia Marques, Brazil
Não sei quem sou. Se soubesse, não estaria escrevendo. E você também não sabe quem é. Se soubesse, não estaria lendo.

sábado, 18 de setembro de 2010

SINESTESIA

Acordei de um sonho que não me lembro sequer de ter dormido, ciente apenas de que enquanto dormia aqui alguém encontrava-se desperto do outro lado. Ainda de olhos fechados e a alma aberta em susto, a boca me trazia um gosto estranho entre o azul e o som de trombetas, lembrando-me o cheiro das amêndoas amargas e do amor contrariado. Senti que este seria mais um dia qualquer cuspido no futuro. Deixei que a luz entrasse vagarosamente pelas estreitas aberturas de minhas pálpebras, e havia no quarto uma série de coisas que desconheço e que sempre me pertenceram como se estivesse envolvido por um museu de novidades. Meu corpo não queria se levantar mas a alma entendia a necessidade de ser sugada para fora. Sentado à beira da cama com esforço hercúleo, sentia-me firme em minha tontura. Ouvi um som como se alguém pintasse um quadro sem cores de natureza morta e, ao olhar pra cima, anacolutos desordenados voavam ao redor da lâmpada recém acesa, recém apagada, recém acesa, recém apagada. Morna. Minh’alma feito uma lâmpada que se apagou e permanece morna. Tenho que trocá-la, pensei de mim para mim mesmo – a alma, não a lâmpada – sabendo que a coragem jamais viria e antes que notasse uma logopéia rastejante entrando pela porta entreaberta, entrefechada, entreaberta, entrefechada. Talvez eu não tenha fechado a janela da sala, talvez eu não tenha fechado a porta da sala, talvez eu nunca tenha fechado nada, e essa vida aberta e desperta seja só o que me resta e me atormenta. Minha logorréia fez ssinestesia ons no estômago e senti fome, mas era preciso antes vestir uma roupa, escovar os dentes, pentear o cabelo e defecar os dejetos de ontem tradicionalmente às quinze para nove em ponto, o que me lembra um pedaço de pizza à espera de ser devorado ou decifrado. Fi-los. Não me lembro se comi pizza. Em minha cosmovisão distorcida, o rosto no espelho não era o meu, mas o de um outro que vivia minha vida, que sabia o que eu sonhava, pensava e sentia. Os espelhos e a cópula são abomináveis pois multiplicam o número de homens, já dizia um sábio cego antes que a visão lhe faltasse. Melhor que eu não trepasse aquele dia, melhor apenas que eu refletisse. (me). Fome. Vontade de comer chocolate. Mas não sei se a vontade era minha ou do outro que me encarava, que dançava pra mim de dedo em riste. Não há mais metafísica no mundo senão chocolates e as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria. Como eu não sabia se eu era o outro, a fome que eu sentia talvez fosse o outro empazinado, farto das coisas da vida. Ou da morte, já que a vontade dele era a minha. Ou seria o inverso. Lavar o rosto. Da torneira escapava uma luz forte e amarelada que fazia a pia transbordar de uma luminosidade que não ouso encarar. De repente, todo o banheiro é luz até os joelhos, e os azulejos infiltrados permitem escapar hexâmetros heróicos de onde antes fugiam apenas redondilhas menores. Tenho vontade de fugir para perto de tudo, minha maneira de estar sozinho. Ouço um epicédio do lado de fora. Alguém morreu. Que fiquem os chocolates para depois. Não os tenho em casa, como não tenho nada que seja doce, nada que seja palatável, nada que tire da boca esse cheiro das amêndoas amargas e do amor contrariado ou esse som agridoce dos olhos. Palavras repetidas. Quais são as palavras que nunca são ditas. Quem morreu? O próprio Alves? Saio do quarto meio que às pressas e uma lufada de epifania me atinge em cheio, enquanto a luz se espalha pelo assoalho da casa. Na parede do final do corredor um relógio que já marca nove em ponto, um calabouço de ar, um pedaço frágil de mim mesmo. Olho pela janela. Sim. Deixei-a aberta, estou salvo, não me afogarei na luz. Deixei-a aberta assim como a porta e todas as outras janelas e todas as outras portas. Deixei-as abertas assim como toda a casa, assim como toda a alma. O mundo é circular. Estou tonto. Parem! E é por tudo estar aberto, as janelas, as portas, as ânforas vazias cheias de água quente, os vasos de plantas, as caixas de sapato que dizem este lado para cima, as gavetas, os armários, por tudo estar aberto e mais um pouco, que  entram e saem sem pedir licença, sem fazer cerimônica, como se minha casa fosse a casa de todos, a casa dos tolos. Poucos ficam, e os que ficam dizem demais. Querem me dizer quem sou, como devo me sentir e como devo pensar. Se ficassem calados, emudecidos a um canto feito samambaia, se não gritassem, se não gemessem ou se ao menos nem tocassem a valsa vienense… Em minhas andanças pelo mundo nunca saí do meu país. Saudades de Itabira. Nunca estive lá. Do lado de fora, nenhum cortejo fúnebre, apenas um eufemismo de roupa verdejante me acena como se me conhecesse de eras extremas. Se não conheço sequer a mim, que liberdade tem essa figura esquálida para levantar-me a mão? Enlacemos a mão, Lídia, sentados à beira do rio. Depois pensemos, crianças adultas, que a vida passa e não fica, nada deixa e nunca regressa. Sinto-me triste como um pôr-do-sol e tenho medo da noite, pois em meu céu interior nunca houve uma única estrela, e ontem ameaçaram chover. Mas ainda é cedo, muito cedo. Alguém vem me visitar hoje. Não me lembro quem seja. Que bom que esqueci. Não preciso fingir almoço ou jantar, não preciso fingir sente-se aqui que vestirei algo mais confortável. Preciso apenas ser eu. Lembro-me, de súbito, do espelho. Deixei minha imagem lá, meu reflexo sozinho, no quarto cuja lâmpada não sabe se morre de uma vez ou prefere sobreviver mais algumas horas. Quando não há ninguém olhando, o espelho reflete alguma coisa? Dou meia volta. A casa inundada de luz já fazia alguns móveis flutuarem. O espelho no mesmo lugar. Mas o espectro não estava mais ali. Talvez já houvesse fugido pelas janelas ou portas abertas e nunca mais retornasse, como aquela que se escondia por trás de um nome de escuridão. Mas resolvo esperar enquanto a casa se enche cada vez mais de luz e me sufoca quase. Estranho. As luzes não vazam pelas portas e janelas escancaradas, como se as trevas desenhadas pela luz do sol fossem um escudo que impedisse que um mundo se confundisse ao outro. A direção da luz é que desenha a sombra. Penso. Logo, desisto. Volto pra cama. A luz não é assim tão ruim, tem um gosto bom embora rançoso. Preciso dormir mais, deixar o equilíbrio ir embora. Talvez assim eu volte para o espelho, ou o espelho volte pra mim.

Até os 25 anos não me lembro de um dia sequer em que eu não a tenha amado, em que eu não tenha perdido o sono por um amor platônico. Mas um dia, passando de ônibus por um lugar qualquer, e sem que a esperasse, eu a vi e ela me viu pela janela ensanguentada de lembranças. Ambos sorrimos e nos acenamos. O aceno dela era de cumpimento-que-bom-te-ver. Meu aceno era de adeus. E nunca mais pensei nela. Às vezes é difícil até lembrar-me de seu nome…

……..

Antes que me acusem de plágio: neste texto que pode dizer mais sobre você do que sobre mim mesmo, há citações de Jorge Luis Borges, Fernando Pessoa, Júlio Cortázar, Gabriel Garcia Marques, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro, Cazuza, Renato Russo, Carlos Drummond de Andrade, Dammy Urgo e Paul Rabbit. Deve ter alguma coisa de Kierkegaard, Nietzche e outros clérigos já mortos. Deus está morto, disse Nietzche, mas foi Deus quem matou Nietzche.

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