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Macondo, Garcia Marques, Brazil
Não sei quem sou. Se soubesse, não estaria escrevendo. E você também não sabe quem é. Se soubesse, não estaria lendo.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

LENDA URBANA

Houve um tempo em que choveu tanto que todos os caminhos se apagaram. Quem estava dentro não podia mais sair pois temia se perder; quem estava fora não podia mais chegar pois já se encontrava perdido. As nuvens que trouxeram a chuva eram tão escuras que podiam se dizer cegos. Não havia ruas, avenidas, esquinas, curvas. As casas ao longe eram apenas um brilho pálido, distante e intocável como estrelas. Mas iam se apagando aos poucos. Feito ratos, os que estavam fora pensavem que seriam capazes de chegar às suas casas apenas se seguissem pelos cantos. Mas não havia cantos. Em nenhum dos sentidos. Mal havia voz. Apenas lamentações, gemidos, sufocos. Tudo era uma tristeza profunda. Os que estavam dentro e olhavam pela janela enxergavam os outros em desespero, e estavam tão próximos que quase podiam tocá-los. Mas os outros não se aproximavam, e eles não ousavam sair.

o-gritoA escuridão nos dá a impressão de que tudo está longe demais de ser alcançado.

Eram animais com resquícios de domesticação: mesmo com portas e janelas mantidas abertas, ou não saíam ou não entravam. Era como se entre um mundo e outro houvesse um fino vidro que os impediam de se tocar. Duas castas, duas raças, dois grupos monstruosos, descabelados, desdentados, sujos e famintos. Aos poucos, ambos os grupos, os de fora e os de dentro, foram perdendo a lucidez, pois as nuvens que trouxeram a chuva não se afastaram em anos. Suicidaram-se, mataram-se, devoraram-se. Procriaram-se entre si e geraram cópias mal feitas de seus próprios defeitos. Mais que isso: decifraram-se. E a população de irracionais se reduziu a poucas dúzias que se escondiam das trevas dentro de suas próprias escuridões.

Quando as nuvens finalmente se foram e o sol brotou pálido e escasso após muitos anos, os poucos que sobreviveram não sabiam mais (se) enxergar. Estavam tão acostumados com as trevas que não viram diferença nenhuma. Nem notaram que os caminhos ainda estavam lá, que as casas e os edifícios permaneciam de pé, que as janelas e portas continuavam abertas, e que todas as ruas e avenidas ainda tinham suas placas antigas com nomes históricos dos quais não se lembravam mais dos feitos, ou datas marcantes, nas quais não sabiam mais o que comemorar. Permaneceram os mesmos animais que eram, assim como somos até hoje.

Apenas estamos inconscientes.

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